O texto na era digital
Para além do internetês, a internet está mudando a maneira como lemos e escrevemos
Edgard Murano
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Na ponta do lápis: escrever tornou-se uma atividade mais banal depois da
internet, consequência de blogs, e-mails e redes sociais
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Houve um tempo em que o hábito de manter cadernos de anotações era algo
bastante corriqueiro. Os chamados de "livros de lugares-comuns" (ou
commonplace books
) eram utilizados pelos leitores para o registro de trechos e passagens
interessantes com que se deparavam em suas leituras. Mas além de
transcrições, esses cadernos também reuniam apontamentos sobre a vida
cotidiana, conforme relata o historiador Robert Darnton em
A Questão dos Livros
(Cia. das Letras, 2009, p.164). Essas informações eram grupadas e
reorganizadas à medida que novos excertos iam sendo acrescidos. O hábito
espalhou-se por toda a Inglaterra no início da era Moderna, e muitos
escritores famosos - entre eles John Milton e Francis Bacon - cultivaram
essa maneira especial de absorver a palavra impressa, fundada na não
linearidade e na fragmentação da informação.
Tradição viva
Hoje, com mais de 37 milhões de usuários de internet só no Brasil, essa
tradição de escrita parece mais viva do que nunca, impulsionada por
novas tecnologias e amplificada pela comunicação em rede. Não é exagero
afirmar que e-mails, blogs e redes de relacionamento já deixaram sua
marca na produção textual contemporânea. Para o escritor Michel Laub,
autor dos romances
O Gato Diz Adeus e Longe da Água
(ambos pela Cia. das Letras), a internet tornou os textos mais naturais
e coloquiais, embora não seja a única responsável por essas mudanças.
- O texto da internet é um texto em geral mais coloquial, menos
"literário", no sentido de ser mediado por truques de estilo. A internet
não inventou a coloquialidade, mas fez com que ela passasse a soar mais
natural para muito mais gente e, estatisticamente ao menos, virou um
certo padrão - afirma.
Com cada vez mais usuários - o acesso à rede no Brasil aumentou 35%
entre 2008 e 2009 - a internet está criando novos hábitos de comunicação
entre as pessoas, que acabam se adaptando às facilidades da nova
tecnologia. Isso vale tanto para a leitura, em vista da profusão de
textos veiculados na rede, quanto para a escrita, principal meio de
expressão do internauta (pelo menos até que as conversas "via voz" se
tornem mais corriqueiras).
Superficialidade
Há quem veja nessa torrente de informações que jorra na internet um
fator negativo, dificultando nossa concentração em textos de fôlego como
romances, por exemplo. Em artigo controverso publicado na revista
The Atlantic
em 2008, intitulado "O Google Está nos Deixando Idiotas?", o crítico de
tecnologia Nicholas Carr defende a tese de que a navegação na internet
está interferindo em nossa capacidade de leitura. Se antes, afirma Carr,
ele se sentia um "mergulhador num oceano de palavras", hoje ele
literalmente se sente "esquiando nesse oceano", dando a entender que a
experiência de ler proporcionada pela internet é bastante superficial.
Por falar em imersão, para Roseli Deieno Braff, supervisora de língua
portuguesa da editora COC, essa geração que já nasceu imersa na
tecnologia não possui carência de informações, pois está sempre
conectada. Porém falta muitas vezes a capacidade de se aprofundar mais
no que leem e, consequentemente, de separar o joio do trigo.
- Não falta informação para esses jovens, mas muitas vezes falta a
capacidade de processar e refletir sobre tudo o que leem. Ansiosos e
inquietos, consideram uma tarefa muito difícil ler um livro de cem
páginas. Nesse sentido, a ausência de concentração torna-se muito
negativa, obstáculo inclusive para a resolução dos problemas que a vida
certamente vai oferecer - afirma Roseli.
Ainda que o processo de reflexão não esteja acompanhando o ritmo
acelerado com que esta geração vem consumindo informações, a professora
de português Rosangela Cremaschi, do curso de Comunicação Escrita da
FAAP, acredita que a diversidade de códigos e linguagens tem deixado os
jovens mais atentos e receptivos.
- A internet deixou o leitor mais receptivo e participativo, pois recebe
informações em diferentes linguagens e por meio de leituras não
lineares. O texto até então "sagrado" se torna mais acessível. Se antes o
ato de ler era algo distante, a internet acabou com isso, o que é
positivo - defende Rosangela.
O escritor Michel Laub também vê com bons olhos os novos hábitos de
leitura incutidos pela tecnologia. Para ele, a propensão a textos mais
curtos em sites e blogs não nos tornou necessariamente mais dispersos ou
desatentos. Ao contrário: lê-se mais do que antigamente.
- Os que leem textos mais longos e difíceis são uma minoria como sempre
foram. Mas o restante das pessoas, que há uma década não lia nada, hoje
trabalha com o texto escrito boa parte do tempo, e isso cria um certo
hábito de leitura, mesmo que diluído - afirma.
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O historiador Robert Darnton: a leitura e a escrita fragmentadas tiveram precedentes na era Moderna
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Mais leitores
Não por acaso, segundo a pesquisa Retratos da Leitura no Brasil,
realizada pelo Instituto Pró-Livro na última década, o Brasil saltou de
26 para 66,5 milhões de leitores no que diz respeito a livros impressos.
Esses números por si só já desfazem qualquer "má" influência da
internet sobre os hábitos de leitura do brasileiro.
- A internet não deve ser vista como algo negativo, pois amplia nossas
possibilidades de leitura. É claro que é preciso um olhar crítico, e
este é o papel do educador, o de orientar a busca, seleção e
gerenciamento das informações que estão disponíveis na rede - afirma
Valéria Caratti, consultora do portal Planeta Educação.
Não só a leitura como também a escrita foram favorecidas pela explosão
da comunicação na internet observada na última década, que proporcionou
um contato maior das pessoas com atividades que envolvam a escrita -
como deixar um recado na página de um amigo, escrever um e-mail ou
postar textos num blog. Também é inegável que sites de relacionamento -
como Orkut, Twitter e Facebook, só para citar os mais conhecidos -
tornaram o ato de escrever mais banal e cotidiano, sem nenhum prejuízo
nisto, uma vez que a escrita elaborada deixou de ser algo exclusivo de
escritores e das atividades escolares.
Os números atestam a presença incontornável das redes sociais no dia a
dia das pessoas. Segundo uma pesquisa realizada pela empresa Hitwise
Serasa Experian, essas redes são responsáveis por 62% do tráfego de
internet no Brasil. Em julho de 2009, 21,4 milhões de pessoas usaram
algum tipo de rede social no país, isto é, cerca de 83% dos internautas
residenciais, de acordo com o Ibope Nielsen Online.
O que já havia sido deflagrado nos anos 90 pela comunicação via e-mail,
mensageiros eletrônicos e pela cultura escrita dos blogs, as redes
sociais elevaram à enésima potência ao garantir interatividade e
visibilidade às pessoas em torno de interesses em comum. O próprio
microblog Twitter, intensamente debatido na mídia por sua contribuição à
concisão (ver a matéria "
O que é possível dizer em 140 caracteres?
", Língua 54), de certa forma cristalizou uma tendência a textos
enxutos. Gêneros de texto como o aforisma, o haicai e o epigrama, entre
outras formas breves, encontram no Twitter o suporte ideal.
Para além dos modismos que nascem e morrem na grande rede mundial de
computadores, o advento do microblog Twitter extrapolou essa esfera para
cair na boca de grandes homens de letras, muitas vezes avessos a
novidades tecnológicas, como o escritor José Saramago, que chegou a
declarar: "Os tais 140 caracteres reflectem algo que já conhecíamos: a
tendência para o monossílabo como forma de comunicação. De degrau em
degrau, vamos descendo até o grunhido". Por mais que autores torcessem o
nariz para a ferramenta, muitos deles aderiram, dando corpo ao que se
chamou de "tuiteratura". No Brasil, escritores como Fabrício Carpinejar,
Marcelino Freire, Carlos Seabra, entre muitos outros, aderiram ao novo
gênero, emprestando-lhe uma dicção própria.
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Para o escritor Michel Laub, a internet tornou os textos mais naturais e coloquiais
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Coexistência
Essa diversidade estilística introduzida na literatura pelo texto
praticado na internet, com suas formas mais soltas e coloquiais, criou
dois caminhos possíveis para escritores, afirma Michel Laub. Ele
argumenta que, por um lado, parte dos leitores ficaram mais impacientes
com a prosa de feições literárias - mais lentas, de vocabulário mais
amplo, verbos no mais-que-perfeito etc. - ao passo que outros leitores
passaram a valorizar ainda mais esse tipo de escrita, justamente pela
superexposição a textos mais simples encontrados na internet. No
entanto, o escritor acredita que essas duas vertentes de prosa podem
coexistir.
- Sempre é possível a diversidade na literatura. Cito dois exemplos de
autores que escreviam assim muito antes da internet: William Faulkner,
mais "oral", e Marcel Proust, mais "literário" - explica Laub.
Para Roseli, no entanto, os resultados dessa coexistência são variáveis, com resultados nem sempre positivos.
- Do mesmo modo que a oralidade intervém na norma culta do idioma, e que
foi uma das bandeiras dos modernistas brasileiros na Semana de 1922, a
linguagem "ligeira", às vezes cifrada e só para iniciados, também afeta a
modalidade culta, e o resultado nem sempre é positivo - afirma.
Anos antes de o microblog cair na preferência de internautas no mundo
inteiro, os blogs já ocupavam um lugar privilegiado na internet, que
pela primeira vez oferecia aos usuários a possibilidade de escrever,
editar e publicar seus próprios textos.
- O espaço reduzidíssimo do Twitter opõe-se ao blog, este sim uma
ferramenta capaz de abrigar fotos, textos próprios ou alheios,
comentários, tudo organizado em forma de mural ou diário eletrônico,
utilíssimo para desenvolver nos estudantes as habilidades de leitura e
escrita - explica a professora Roseli.
A partir daí, navegar pela internet deixou de ser um ato solitário, em
que o usuário apenas entrava nas páginas e lia seus conteúdos. Com os
recursos de interação cada vez mais expandidos, qualquer site é um
convite a comentários, críticas e observações, obrigando os internautas a
desenvolverem discursos de improviso e a defender seus pontos de
vistas. O Facebook, por exemplo, aprimorou as antigas listas de
discussões e fóruns, acrescentando-lhes um visual mais limpo e
elaborado, com diferentes graus de interação acompanhados de recursos
audiovisuais, tornando a experiência de compartilhar informações ainda
mais enriquecedora.
Embora não se possa afirmar categoricamente que a internet favoreceu o
desenvolvimento de uma "cultura letrada", com ênfase em informações
profundas e relevantes, ela reforçou o peso da palavra escrita no
cotidiano das pessoas. Mais do que gírias e jargões, como o famigerado
"internetês", as transformações pelas quais passam a escrita e a leitura
estão por ser dimensionadas.